Conhecemos o centro multidisciplinar Baobá, focado em questões relacionadas ao desenvolvimento e comportamento infantil, em São Paulo, e conversamos com a médica Larissa Rezende. Desse bate-papo nasceu esse especial sobre crianças e movimento, que será publicado em duas partes. Confira!
Yara Achôa, Fitness Brasil
1/2/2024
O movimento deve fazer parte da vida do ser humano desde o início. Mas como começar? A partir de que idade estimular? Como a atividade física pode realmente ajudar o desenvolvimento da criança de forma geral? Buscando respostas para esses questionamentos, conhecemos o Baobá, um centro multidisciplinar focado em questões relacionadas ao desenvolvimento e comportamento infantil, que conta com equipe de especialistas em diferentes áreas para um olhar completo e integrado do universo de cada criança.
Ele foi idealizado por um grupo de especialistas, a partir de suas experiências de trabalho conjunto, como um lugar em que fosse possível acolher as crianças e suas famílias, integrar conhecimento e olhares para um diagnóstico e planejamento terapêutico assertivo, além de valorizar e otimizar o tempo de crianças, pais e cuidadores. Uma das fundadoras é a médica Larissa Rezende – graduada em Medicina (USP) e fonoaudiologia (UNIFESP), com residência em pediatria. E a partir de um bate-papo com a médica, nasceu a ideia de um especial para o FitBR News, abordando o tema “o corpo como forma de expressão – como ajudar e estimular nossas crianças por meio do movimento”.
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Hoje publicamos a primeira parte, com essa rica entrevista dada por Larissa Rezende. “Olhar e acompanhar o desenvolvimento de uma criança de forma integral é um processo complexo e único. Requer conhecimento, empatia, acolhimento, dedicação e sintonia entre família, escola e equipe.” Nos próximos dias traremos a visão do profissional de Educação Física Leonardo Furlan, também do Baobá. Confira!
Qual a importância do movimento de forma geral? A partir de que idade podemos começar os estímulos?
O movimento é uma das primeiras aprendizagens da criança, que a ajuda a tomar consciência do que é ela mesma e o que é o mundo, quais os limites entre ela e a mãe, ela e o ambiente.
O primeiro estímulo ao movimento é o toque, é o abraço, porque para proporcionar o desenvolvimento motor é importante que se estimule o sensorial, a percepção. Por exemplo: abertura delicada das mãos do bebê em um carinho; o conter o braço X deixá-lo livre; o se colocar ao alcance das mãos; os objetos na linha média da visão, para que o movimento dos braços se conjugue ao que os olhos vêm (desenvolvimento oculomotor).
O segundo estímulo importante é o dar possibilidade de movimento. Emmi Pikler, pediatra que trabalha em orfanatos na Hungria, tinha uma fala de “liberdade aos bebês” – deixá-los livres para se movimentar seria o melhor estímulo. Os bebês precisam desse espaço de experimentação do corpo, em superfícies seguras (sem risco para quedas ou objetos que possam ser aspirados) e firmes, para que possam sentir essa resistência e viverem experimentações de impulsos e balanços, de resistências, de pequenas dores. Assim, inicia-se o rolar.
Lembramos que o processo de movimento também é de maturação neurológica, pois a mielinização, que acontece no sentido crânio-caudal (da cabeça aos pés) permite que o bebê vá ganhando eficiência e agilidade na comunicação entre os comandos do cérebro e a execução dos músculos (a mielinização é como encaparmos fios condutores, que são os “braços” dos neurônios para levarem a informação do cérebro aos órgãos executores): assim, o bebê sustenta o pescoço, depois ganha controle de tronco. E que ganho já não é essa conquista, pois controlando o pescoço ele pode direcionar o seu olhar conforme os estímulos e desejos. Com o tronco, melhora essa capacidade e, progressivamente, rola, senta, engatinha, caminha!
Agora, ao caminhar, é preciso que pais e cuidadores sejam corajosos: que criem uma proteção, mas que permitam um risco controlado. Um parquinho é um lugar perigoso, escadas, muros, sofás. O bebê vai se tornando criança e conquistando essas possibilidades de experimentar o corpo, arriscar movimentos de pulos, de escaladas, de escorregar, de balançar.
Nessa fase da primeiríssima infância (0 – 3 anos), o maior estímulo ainda é a liberdade assistida e responsiva. O que é isso? É permitir a exploração, protegendo de risco de lesões mais graves; mas também estar presente, incentivando experimentações e comemorando pequenas conquistas – da forma que só o afeto verdadeiro permite que seja feito com segurança e coragem. Na segunda metade da primeira infância (3 a 6 anos) os movimentos mais complexos podem ser ensinados e estimulados. Seja pelos pais e professores, seja para os profissionais especializados – “jogos de rua”, andar de bicicleta, jogos de bola, dança. E para sempre a vivência esportiva passa a ser não só a experiência e aprendizagem do corpo, mas também do coletivo, das regras sociais, da regulação emocional, da flexibilidade cognitiva, da autoconfiança e autoestima, das habilidades sociais.
Como os primeiros estímulos podem impactar a prática de atividade física na vida adulta?
Sabemos que hábitos adquiridos durante a infância não só têm melhores chances de terem sucesso do ponto de vista de qualidade de execução, mas também de se perpetuarem como hábitos incorporados à rotina.
Como ajudar nossas crianças em escolas, academias, clubes?
Houve em décadas passadas, e persiste ainda na nossa, uma priorização das habilidades cognitivas e do trabalho mental, em detrimento da aprendizagem motora. Com isso, passamos a ver crianças em idade escolar ou até mesmo em anos finais do fundamental sem vivências com os próprios corpos. Não estamos falando aqui de não termos atletas ou pessoas com habilidades esportivas específicas, mas de coordenação motora para atividades de vida diária. Crianças que passaram uma primeira infância sem possibilidades e estímulos para experimentar o movimento, e quando apresentadas a atividades esportivas de demandas motoras mais elaboradas, já tinham resistência em participar delas, pois seus corpos não haviam treinado movimentos simples de coordenação e tomadas de risco.
É importante que pais permitam vivências. Mas como sabemos que muito da educação das crianças hoje é delegado a escolas. E em um mercado de trabalho em que ambos os pais trabalham, às vezes. em cargas horárias enormes, as escolas precisam assumir esse papel de maneira mais robusta. E não só discursar sobre a importância da aprendizagem motora ou a importância dos esportes na saúde física e mental, mas permitir que de fato sejam valorizadas no currículo acadêmico, em todos os anos da educação.
Qual a importância de equipes multidisciplinares na formação das crianças? Quem são esses profissionais?
As equipes multi são compostas por profissionais de diversas áreas, que unem conhecimento para proporcionar o melhor desenvolvimento.
Por exemplo, uma criança com dificuldade de socialização (seja dentro de um diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista ou Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade, seja por ser uma criança mais tímida ou ansiosa) pode ter no seu desenvolvimento motor uma barreira ou um facilitador para interação social. Em qualquer um dos casos, os terapeutas podem se utilizar de vivências corporais para proporcionar essas interações. Até porque, na infância, muitas vezes é através do corpo que proporcionamos encontros e diálogos, nas brincadeiras e mesmo nos conflitos!
E a participação dos pais nesse processo: como podem ajudar – mesmo sem nunca terem recebido incentivo? Como incentivar também a participação desses pais na Educação Física da criança?
Os pais são figuras essenciais. Todo e qualquer processo de aprendizagem é mais significativo e facilitado pelo afeto. E esperamos que as principais figuras de afeto de uma criança sejam seus principais cuidadores, usualmente os pais, mas às vezes avós ou tios.
Além de proporcionarem o incentivo direto da criança, também é sabido que muito da aprendizagem na infância é através do modelo. Assim, o exemplo, a vivência real dos pais daquilo a que estão ensinando e incentivando os filhos é de suma importância e muito poderosa.
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O mesmo acontece, por exemplo, com a alimentação. Proporcionar e incentivar alimentação saudável sem a praticar só tem efeito até no máximo 2 anos de idade. Depois disso, se não é parte do hábito alimentar dos pais e da família, a criança vai perdendo a aprendizagem das variedades de alimentos, da moderação e equilíbrio entre classes de alimentos.
O esporte também ajuda na socialização?
O esporte é sempre um grande “professor” para aprender a lidar com seus limites e motivações, com a frustração e a persistência. E o esporte, principalmente o coletivo, é o maior “laboratório” de prática de habilidades sociais. Reconhecer a forma de falar algo, colocando seus pontos sem ferir o outro, conviver eticamente em grupo, ser solidário e generoso com colegas, reconhecer suas fraquezas e potenciais, ser líder e permitir ser liderado – alternando esses papéis com sabedoria e flexibilidade cognitiva, ter compaixão com adversário e com erros dentro da equipe, comemorar as próprias conquistas sem humilhar ou desmerecer o outro: colocar-se no lugar do outro com empatia e compaixão.
As “crianças da pandemia” – nascidos durante a fase mais crítica de isolamento ou que deixaram de ir para escola e iniciaram sua incursão escolar nesse período – apresentam comportamentos diferentes? Educadores enxergam peculiaridades nessas crianças?
Vemos, sim, particularidades nessas crianças, em diferentes lacunas que dependem da fase do desenvolvimento em que se encontravam. O excesso do uso de telas, a falta de espaços públicos e de possibilidades de vivências motoras, a falta de convivência social, as lacunas de aprendizagem… uma das coisas importantes de ressaltar é a assimetria de possibilidades durante esse período. Seja por questões econômicas, seja por particularidades das famílias. Famílias que viveram isolamentos intensos, em diferentes extratos sociais. Famílias que criaram bolhas de vivências e proporcionaram aprendizagens – mesmo que não usuais como da escola. Famílias com pais trabalhando em casa, mas indisponíveis, famílias com pais sobrecarregados e estressados. Espaços físicos de sítios ou casa X apartamentos pequenos. Tudo isso temos que considerar nas particularidades, mas medindo os impactos sociais, não só os diretos naquela criança, mas, mesmo para crianças que tiveram boas oportunidades (de interação e de experiencias com o corpo e de pais presentes), o impacto da inabilidades de seus pares, cada qual em suas particularidades.
Temos um alto número de crianças de agora 10 anos de idade diagnosticadas com dislexia. São realmente disléxicas? Ou tiveram um processo de alfabetização que se completou, mas teve falhas e lacunas e estão agora manifestando essas dificuldades? Ou a privação e a peculiaridade do processo de alfabetização de fato levaram como consequência a um quadro (mesmo que símile) de uma dislexia. Por que isso ocorreria? Porque nem tudo em desenvolvimento é remediável. Alguns estímulos têm de ocorrer em um tempo ótimo. Se não ocorrem nesse tempo, podemos remediar (criar novos caminhos neuronais, por exemplo, o que é um dos focos das terapias diversas), mas não podemos fazer o mesmo percurso natural que teríamos feito caso as vivências tivessem ocorrido em um tempo ótimo – são as janelas de desenvolvimento. Esse conhecimento temos de antes da pandemia.
Como exemplo, temos uma série de estudos com órfãos da Romênia, na década de 80. Bebês que ficavam em berços, sem estímulos visuais, não estimulavam as vias neurais da visão e do oculomotor, ficando estrábicos. Mesmo que esses estímulos fossem introduzidos posteriormente, o estrabismo e as alterações de processamento visuais não eram revertidos. Quais impactos vimos? Muito pequenos. Atrasos motores no marco do desenvolvimentos do primeiro ano de vida. Atraso de fala e linguagem – com excesso de tela. Dificuldades com frustração e com interação social básica na primeira infância. Dificuldades escolares. Dificuldades emocionais – ansiedade e depressão.
Também aqui temos assimetrias a depender das características – traços de personalidade, perfis de funcionamentos – das próprias crianças e de seus pais. Por exemplo: uma criança que poderia nem ter um diagnóstico de TDAH, pois com os reforçadores presenciais, as estratégias (de lugar na sala, de eliminação de ruídos, de reforçadores positivos da atenção) e com possibilidades de gastos energéticos, ela não tinha prejuízos.
Mas vocês podem imaginar que para essa criança foi muito mais difícil ficar confinada a um apartamento ou manter a atenção e resultar em aprendizagem em uma aula pelo zoom. E os diagnósticos de transtornos do desenvolvimento justamente tem que ser pensados à luz dos prejuízos funcionais para aquele indivíduo. E com o retorno presencial essas assimetrias deveriam ter sido levadas em conta por todos, e, na grande maioria das vezes, não o foram.
Hoje vemos com muito mais frequência diagnósticos de dislexia, TDAH, autismo. Pais e educadores estão preparados para entender e atender essas crianças?
Não estão, mas estamos caminhando. Muito melhores nos últimos dois anos do que nas últimas duas décadas, mas ainda a dois séculos de distância de uma educação e de uma sociedade verdadeiramente inclusivas.
Como educadores, o que vocês podem dizer aos pais e aos profissionais de Educação Física dessas crianças?
Sejam sensíveis e empáticos com as particularidades dessas crianças. Jamais julguem como preguiça, como mau comportamento, como má educação, como oposição e ameaça, como incapacidade. É preciso ter um olhar cuidadoso e informado para entender tantas particularidades (e que beleza que somos assim!) do desenvolvimento humano. Depois de ser empático, depois de entender o comportamento, aí ainda temos um longo passo: aprender a ensinar para diferentes formas de aprender. Isso vale para todas as áreas da educação. Sabemos que é difícil, que os recursos, inclusive de tempo – e também de paciência, de energia – são finitos. Mas procurem ajuda se precisar, procurem a família quando ela estiver disposta – escutem sem julgar o que família e outros profissionais têm a dizer. E tentem construir juntos uma forma de ensinar, por mais desafiador que seja. Respeitem os seus limites, mas lembre-se que vocês são os adultos, que assumiram a responsabilidade de ensino. Abracem essa vocação. E que ela seja para ensinar a todos e qualquer um.
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